segunda-feira, 30 de maio de 2011

Farid, o mascate

Entrou no quarto do hotel, colocou as pesadas malas no chão e deitou-se na cama, pesadamente. Estava cansado, exausto, com a alma vazia. Precisava de um banho quente para reanimar-se. E um bom prato de comida. Mas, e a vontade de levantar-se?
Olhou fixamente o teto. Manchas cinzas de bolor e em um ou outro lugar marcas da umidade da chuva que há dias caía, incessante. Ele, Farid, mascate, que dependia do bom tempo para visitar as fazendas da região, vender mercadorias aos colonos, não sabia mais o que fazer. O pouco dinheiro que ainda trazia na ensebada carteira de couro já chegava ao fim.
As malas, abarrotadas de brincos, anéis, lenços de cabelo, botões, agulhas, colônias e perfumes baratos, meias, etc, há semanas não eram abertas. Sem freguesia, nenhuma venda, nenhum tostão. Braços cruzados, relendo velhas revistas espalhadas pelos sofás encardidos, encostados aos pilares dóricos logo à entrada do pequeno salão do hotel, o tédio das horas perdidas, até quando?
Viera do Líbano iniciar uma nova vida na América – terra das oportunidades – e escolhera o Brasil. Imaginara que tudo seria mais fácil, pois em São Paulo contaria com a ajuda dos patrícios. Enganara-se. Cada imigrante cuidava de si, de sua família, preocupando-se com seus próprios problemas – que a bem da verdade, não eram poucos. Farid não os culpava. Em que poderia dizer-se diferente deles? No início também não começara a poupar, desejando juntar a quantia necessária para a viagem de sua mãe, do Líbano para o Brasil? Pena a realidade não espelhar a imagem de nossos sonhos. Jamais pensara enriquecer. Somente arranjar aqueles benditos dois contos de réis para cumprir a promessa que fizera à mãe – abandonada no porto, com as faces enrugadas cobertas de lágrimas.
No primeiro ano ainda não deixara morrer de vez a esperança que o fazia acreditar que o dia seguinte seria melhor. Muitos mascates haviam começado como ele, do nada, e se tornado ricos comerciantes. Não deporia as armas, nem abandonaria a luta.
Mas, tudo correra tão mal! Com dificuldade dominara a língua portuguesa, passando a compreender o que os fregueses diziam. E aprendera igualmente uma dura lição, que o deixara frustrado com o país que escolhera como lar. Os brasileiros eram patifes, ladrões. Todo cuidado com eles era pouco. Roubaram o inexpe-riente Farid várias vezes. Os “fregueses” cercavam-no, fingindo interesse por suas mercadorias, expostas com o escancarar ingênuo das malas sobre os bancos de madeira das praças. Enquanto alguns perguntavam os preços, pechinchavam, experimentavam brincos e anéis, outros escondiam pequenas mercadorias dentro das calças ou sob a camisa larga. Ladrões, todos ladrões, os brasileiros. Se pudesse retornaria hoje mesmo para o Líbano. Mas, e a vontade?
Estava cansado, exausto, com a alma vazia. Levou a mão à cintura e segurou o cabo do revólver que recebera em troca de uma dívida. Olhou o tambor. Três balas. Uma só, no entanto, bastaria. Encostou o cano na cabeça, um pouco acima da orelha direita e puxou o gatilho...
PROF. GILBERTO TANNUS

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