segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Grande, Moacir José

Entrei na barbearia, sozinho, tinha uns 14 anos. Antes, só tinha ido acompanhado de meu pai. Ansiava por fazer a barba com um profis-sional, a imagem do cliente prostrado frente ao espelho, com o rosto coberto de espuma, a supervisionar o trajeto da navalha, era o sinal inequívoco do amadurecimento: só um homem feito – um adulto – se submetia a tal ritual.
Pisei confiante no exíguo salão e fui reconhecido de imediato: Tudo bem, Bassolinho? E seu pai, como está? A penugem fa-cial não lhe passou despercebido, auspicioso – e gentil –, deixou o adolescente à vontade, me acomodou na clássica cadeira, reclinável e giratória, e indagou como queria o corte do cabelo. Bem curto, respondi. Seguiram-se os inesquecíveis minutos ao som das tesouradas, o pentear, as espanadas, o fechar dos olhos para igualar a franja – eram tempos de vasta cabeleira. O final, esperado, com o espelho portátil a refletir a nuca. Aprovado, perguntou-me, com estratégica naturalidade: Faz a barba também? Frio na barriga. Será que chegou a hora ou vou passar vergonha? Hesitei e... Desisti. Não, obrigado, só o cabelo mesmo, esquivei. Estreei em parte, a barba, vou deixar crescer mais, ponderei.
O espaço era ponto de encontro. Além de quem estava sendo atendido e dos que aguardavam pelo serviço, habitues e frequentadores eventuais, a trocar ideias, discutir, sobretudo, política e futebol. Todos homens maduros. Na mesinha de canto, somente jornais locais, lidos e comentados.
Voltei meses depois, a barba, ainda ralinha, mais comprida. É hoje, decidi. A ansiedade contida na espera, arrisquei uns palpites na conversa – nem impressionei nem fiz feio, conclui. Seguro, sentenciei: a barba também, por favor. Expe- riente, percebeu que seria minha primeira barbeada, a pele frágil e algumas espinhas me denunciavam. Desta vez, nem senti o corte do cabelo, tamanha a expectativa pelo barbear. Cada momento com sua importância, a toalha úmida no rosto, o bater no pote para crescer a espuma, o pincelar, em movimentos firmes e circulares, a espalhar o creme nas bochechas, pescoço, queixo, e o retoque final sobre o bigodinho. Cena inédita, me vejo com a cara branca: Eis-me adulto, enfim! A curiosidade na sutil olhadela ao manuseio, a navalha já era do tipo atual, montada com a metade da gilete e não mais aquela fixa, afiada no couro – sinal dos novos tempos de então.
O fio da lâmina encosta na altura da costeleta e desliza à jugular. É preciso confiar no barbeiro, lembro-me do ditado. Junto com os incipientes pelos foi-se minha infância, muito bem vivida, diga-se. De cara limpa e cabelo aparado, vimos irromper um homem, o garoto crescera. Diluiu a loção pós-barba com doses de água, um arder suportável anuncia o crepúsculo do rito de passagem: cheguei criança, saí adulto. A primeira sensação de segurança para enfrentar os desafios inevitáveis à idade que avançara.
Virei cliente. Experimentei outros cabeleireiros, fui morar em São Paulo, retornei a Taquaritinga e ao salão para me tornar um habitue, não me restringia a palpitar, puxava o assunto. A cabeleira de outrora dando lugar a uma irritante e progressiva calvície e a penugem que evoluiu para uma barba cerrada – os poucos cabelos e o cavanhaque espesso a reluzirem um embranquecimento lento e cadenciado. Incluí um pôster do São Paulo na parede repleta de Palmeiras (seu time), Corinthians e Santos. Prova de tolerância democrática. Duas estranhas gravuras de Romeu e Julieta, umas folhinhas, o crucifixo, o desenho, no grafite, do ex-parceiro, falecido prematuramente, faziam a decoração.
Lá, meu filho cortou o cabelo a primeira vez, aliás, todas as vezes. Viramos amigos, compartilhávamos os mesmos ideais políticos (e o mesmo partido), convergíamos. Conversador, sem ser inconveniente ou radical, acreditava que o Brasil está no caminho certo e sonhava com uma cidade melhor.
A pequena porta nos altos da rua do Comércio, fechada, é um vazio imenso. Meu primeiro e, até agora, último barbear.
Minha homenagem ao Alemão Barbeiro.
LUÍS JOSÉ BASSOLI

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